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Muito além de crime e castigo

Publicado: 16/06/2019

imagem ilustrativa

Renato Fragoso

De início, uma crônica: já se aproximavam das 22h00 da quarta-feira, 29 de maio. Dois estudantes cruzavam o Centro da cidade de Campina Grande quando, nas proximidades da Biblioteca Municipal, Av. Maciel Pinheiro, presenciaram a abordagem de dois homens em uma moto a um carro que aguardava o sinal abrir. Um assalto. A reação instintiva foi saírem do possível campo de visão dos assaltantes e procurarem abrigo. Foi possível ver a motorista ser arrancada do carro e ouvir gritos de criança. Ao encontrarem lugar seguro, ligaram para o 190. O telefone encontra-se ocupado, por favor, tente mais tarde. O número da emergência estava ocupado. Emergência ocupada. Um absurdo kaftiano. Depois de algumas tentativas, ligaram para o SAMU que atendeu e informou que nada poderia fazer, pois os sistemas eram diferentes e não tinham ligação com a Polícia Militar. Foram mais algumas tentativas ainda dando ocupado, até uma operadora atender à chamada, informar que aguardaria a vítima entrar em contato para aferir os detalhes, como placa do carro, cor, etc., e dizer que, “sim, a gente envia uma ronda, sim”.

Linhas de emergência ocupada já havia estampado manchete no Portal T5, da Rede Tambaú de Comunicação, quando em João Pessoa, 15 de agosto do ano passado, o problema aconteceu e perdurou por todo o dia. A explicação, segundo o Corpo de Bombeiros, também afetado na época, foi a presença de uma falha técnica no Centro Integrado de Operações Policiais (CIOP). Para entendimento, quando alguém liga para o 190, o sistema telefônico identifica a cidade de registro do número e direciona a ligação para o centro de atendimento de emergência da Polícia Militar, ou para centros de atendimento terceirizados. Linhas ocupadas, porém, terminantemente não deveriam fazer parte desse roteiro.

Entre abril e maio de 2018, 18 mil ligações para os números de emergência foram registradas como trote, segundo o SAMU e o Corpo de Bombeiros. Em horários de pico, o índice chegou a 31% das ligações totais para o Serviço de Urgência. Conforme o Código Penal, artigo 340, mobilizar autoridades comunicando falsas ocorrências representa crime passível de multa e detenção. Campanhas de conscientização são veiculadas nas mídias, a fim de frisar ao cidadão o prejuízo acarretado pelos trotes, um dos mais graves é exatamente a ocupação de linhas e a mobilização desnecessária de forças. Além disso, foi lançado em março de 2017 o aplicativo SOS Cidadão, que estende o atendimento do CIOP, visando diminuir o problema dos trotes, permitindo (após cadastro do nome completo do usuário, CPF, RG, telefone, e-mail e endereço, dados a serem validados pelo Centro Integrado) que sejam enviadas chamadas de emergência para a PM e também para os Bombeiros. É claro que só funciona em conexão com a internet.

Mesmo que possuam uma lógica semelhante, os sistemas de atendimento de emergência não são totalmente integrados. Corpo de Bombeiros, SAMU e Polícia Militar, mesmo sendo serviços de urgência, não compartilham informações entre seus atendimentos, sendo necessário acionar cada um se a situação demandar. Nos Estados Unidos, quaisquer emergências são tratadas pelo 911, o North American Numbering Plan, ou Plano de Numeração NorteAmericano, o qual, além de completamente integrado, pode rastrear a localização da chamada para agilização do atendimento. Na Europa, a partir de 2008, foi instituído o SOS 112 como único número de emergência, podendo ser utilizado de qualquer tipo de aparelho, de qualquer lugar do continente, sendo atendido pelos centros de emergência que triam a ocorrência e direcionam a ligação para o sistema de saúde, policial ou de incêndio, conforme necessidade. É gritante o quanto estamos atrasados, num país em que os índices de violência são alarmantes.

No ano de 2017, as despesas dos estados com a Segurança Pública registraram aumento de quase 32% em relação a 2008, mesmo com registro de queda na receita da União. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os gastos com esta área nos estados atingiram o valor de R$ 78 bilhões, contudo, a distribuição destes investimentos não é producente, nem contribui para um desenvolvimento da eficácia dos serviços. Quase ¾ dos gastos do Ministério da Justiça estão empenhados no custeio da administração e folha de pessoal, sobretudo das Polícias Federais. Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, em entrevista ao Nexo Jornal, a segurança pública gasta cada vez mais e pior. A massa policial é hiperexplorada, mal paga e mal preparada, trabalha sob condições desumanas, sendo que em suas divisões de exercício ostensivo, a periculosidade agrava a situação dos profissionais envolvidos e a pressão organizacional é exploradora. A Polícia Militar, em especial, é cobrada por produção e, impedida legalmente de investigar no âmbito civil, isso encoraja batidas, repressão e prisões em flagrante, contributos diretos para, entre outros males, a superpopulação carcerária.

Um levantamento realizado pela revista Piauí, revela cifras assombrosas. O número de presos no Brasil foi multiplicado por oito nas últimas três décadas, e se compararmos, a população total do país nem sequer duplicou. Ainda segundo o levantamento, As prisões contabilizadas neste aumento durante o período são, em maioria, por crimes de tráfico de drogas e somaram, em 2016, uma população de 156,6 mil presos – é mais do que o total da cidade de Franco da Rocha, em São Paulo. A guerra contra as drogas é efetivamente perdida, como alguns países e territórios já inteligiram, e leva uma presa por tráfico, para cada pessoa presa por roubo. Mais dados pela Piauí: 1/3 dos cárceres em presídios são presos provisórios, aguardam julgamento; e em média no Brasil, existem dois presos para cada vaga em estabelecimento penal, chegando, no Pernambuco, a três presos para cada vaga.

Suzann Cordeiro, membro do International Correction and Prison Association (ICPA), entende como objetivo da pena a punição, mas também, principalmente, reintegração harmoniosa de infratores à sociedade, e não há falta de instrumentos legais, pois eles já existem e são entendidos como avançados, o grave problema está na execução. Ninguém se recupera no inferno. Na metade do ano de 2006, o centro econômico do país, São Paulo, experimentou dias de terror, com ataques à mão armada, bombas e incêndios. Os atos criminosos foram atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC). A organização criminosa nasceu em 1993, em uma penitenciária da cidade de Taubaté, interior paulista, de rigorosa disciplina, com direito à refeições com insetos vivos, sanitários inutilizáveis e surras com barras de ferro ao menor protesto. O diretor do presídio, na época, era José Ismael Pedrosa, já havia passado pela direção do Carandiru quando do massacre de 1992. Novos presos são obrigados a participar de facções dentro dos presídios e, quando saem, estão compromissados em servir às organizações comandadas de dentro desses lugares.

Outro destino é a morte. Entre 26 e 27 de maio, 55 detentos foram assassinados dentro de presídios em Manaus, em meio a uma disputa pelo controle da facção Família do Norte, concorrente histórica do PCC, ligada ao tráfico de drogas, predominantemente na conhecida rota do Solimões, importante porta de entrada e saída de entorpecentes do país. Os ares são corporativos e é real, essas organizações funcionam como negócios e o tráfico é um mercado, regulado à sangue e dinheiro, e de funcionamento garantido e paralelo aos veios corruptos da Polícia, bastante evidentes hoje, pois são vizinhos, funcionários e homenageados pela dinastia que ocupa a presidência do Brasil, nestes duros 2019.

A 7 de maio, Bolsonaro I decretou, numa cerimônia sensacionalista, alterações nas regras de acesso ao porte e à posse de armas de fogo e munição, atrelando a isso um ideal de antiintervencionismo e combate à violência. Mas tem bico de lobby, asa de lobby, pata de lobby e grasna como lobby, não se engane. A Época Negócios noticiou neste mesmo dia que a Taurus, grande fabricante nacional de armas e munições, teve ações com alta em picos de 9,55% perto do final do pregão. Coincidências. O discurso armamentista é frequente e convicto em todo o grupo o qual Jair é rótulo, perpassa pela fomentação da flexibilização do acesso às armas pela população, além de agregar lapsos verborrágicos em prol da pena de morte e do respaldo para a ação letal das policiais.

Para a reportagem da Folha de São Paulo, quando da ocasião em que Sérgio Moro apresentara seu pacote anticrime, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, afirmou “Nos preocupa que o projeto possa levar a uma maior letalidade da polícia brasileira, que já é a que mais mata no mundo”. E, de fato, na soma dos 18 estados que contabilizam separadamente as mortes violentas causadas pela polícia das por demais causas, em 2018, vemos o número de 5,5 mil assassinatos, um aumento de quase 20% sobre o ano anterior.

 Um mês após a canetada presidencial, na última quarta-feira, 5 de junho, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lançou o anual Atlas da Violência e, na análise de Daniel Cerqueira, técnico de planejamento de pesquisa do IPEA e coordenador deste estudo, reconhece-se que houve aumento na taxa de homicídios, mais de 65 mil pessoas foram mortas em 2017, segundo os dados que compõem o Atlas. É um índice de 31,6 mortes a cada cem mil habitante. Para Cerqueira, bons olhos devem enxergar que houve um aumento no número de unidades federativas que diminuíram o número de homicídios. Para ele, isso deve-se ao envelhecimento da população em geral e ao estatuto do desarmamento, uma vez que na comparação entre os 14 anos antes e 14 depois do estatuto, observou-se uma queda de 4,6 pontos percentuais na média de crescimento dos homicídios. Entretanto, a guerra de facções foi responsável por concentrar a máquina de mortes do país em regiões específicas, segundo Daniel. Porta aberta para irmos mais a fundo.

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Norte e Nordeste romperam a marca de 45 mortes para cada cem mil habitantes; a Paraíba tem, dentro da população de jovens entre 15 e 29 anos, o índice de 72 mortos para cada cem mil, pouco acima da média nacional e metade da média do primeiro colocado neste ranking macabro, o Rio Grande do Norte com 152,3 para cada cem mil; 72,4% dos homicídios, em 2017, foram cometidos com armas de fogo; entre 2007 e 2017, das 618 mil vítimas de homicídio, 92% eram do sexo masculino, 74,6% dos homens e 66,8% da mulheres possuíam até sete anos de estudo. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras, uma taxa de 43,1 negros para cada cem mil habitantes, 33,1% maior durante a década antecedente, contra 16 não negros para cada cem mil, 3,3% maior, no mesmo período. Denúncias de mortes de LGBTI+ aumentaram em 127%, no ano retrasado, e em 2016, foram 5.930 notificações de violência contra homo e bissexuais. Entre as mulheres, 13 mulheres por dia morreram em 2017, 4.936 no total; contra elas, homicídios fora de casa caíram 3,3%, dentro de casa aumentaram 17,1%, e por arma de fogo dentro de casa aumentaram 28,7%.

O cenário é frustrante e as propostas já citadas de endurecimento do Código Penal e de mais fácil acesso a armas não resolvem quaisquer quesitos humanos nesta equação. Se criminosos são cada vez mais marginalizados, policiais são cada vez mais psicologicamente destruídos. Policial civil do estado da Paraíba consultado durante a produção da matéria afirma que as condições de trabalho são bastante precárias, muitos recursos estão sucateados ou indisponíveis, acompanhamento médico é mínimo e, muitas vezes, desencorajado e as insatisfações hierárquicas são desalentadoras. Segundo ele, o sentimento de fracasso de alguns colegas, principalmente da PM, é constante, tendo sido tragicamente capaz de levar recentemente um oficial ao suicídio.

A caótica conjuntura da segurança pública no país, permitida pelo malogrado sistema herdado da época da ditadura militar, só revela que o problema que enfrentamos é estrutural e muito mais complexo que qualquer terraplanista possa julgar. O modus operandi anti-intelectual que o governo executa e semeia nos capilares da sociedade certamente produzirá efeitos ainda mais nefastos em uma problemática tão sensível e explosiva. Decerto, contam com a seletividade midiática, que segmenta narrativas muito bem construídas entre o espetáculo de um Sikera Jr. e a providencialismo de um Celso Freitas. Muito além da dialética do medo, para nós – digo – para os dois estudantes, era inevitável perguntar-se: linha de emergência ocupada? Sistemas de atendimento não interligados? Aguardar contato das vítimas para agir? Ruas sem a presença constante de segurança? Enquanto o Estado não usar nossa suada fortuna para fazer desses serviços excelência em execução, não há o que argumentar sobre a solução ser colocar uma arma na mão do “cidadão de bem”. A quem interessaria não resolver?

*Material experimental produzido sob caráter acadêmico

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